A MINHA HISTÓRIA- A EXPERIÊNCIA INÉDITA DE UMA PROFESSORA

REVISTA "SELECÇÕES"

JUNHO 2007

A MINHA HISTÓRIA

A EXPERIÊNCIA INÉDITA DE UMA PROFESSORA

HAVIA BARREIRAS MUITO REAIS.MAS TAMBÉM HAVIA NAQUELAS CRIANÇAS UMA TOLERÂNCIA PERANTE A DIFERENÇA QUE OS ADULTOS DESCONHECEM.

TERESA OLIVEIRA

DIANTE DE MIM,ERGUIA-SE A ESCOLA.ILUMINADA E DIGNA DE CANÇÕES ALEGRES.EMANAVA DELA UM PERFUME MARÍTIMO.OS TRAÇOS AZUIS SOBRE O BRANCO.O NOME HERÓICO DOS DESCOBRIMENTOS TRAÇADO NO MURO PRINCIPAL.E,PARA MAIS ADENSAR O SEU CHEIRO,FLUÍA PERTO O RIO TEJO.MAS,PARA MIM,ERA TRAIÇOEIRA.TRATAVA-SE DE UMA ESCOLA EXCLUSIVAMENTE OUVINTE,E EU ERA UMA PROFESSORA SURDA.
OS ALUNOS JÁ ESTAVAM NA SALA,SENTADOS NOS SEUS LUGARES,AGUARDANDO PELA CHEGADA DA NOVA PROFESSORA.ENTREI,DE PASTA PRETA NA MÃO,DE CABEÇA ERGUIDA,SENTINDO PEQUENOS OLHARES CRAVADOS EM MIM.TRINTA CRIANÇAS SAÍDAS DE ESCOLA PRIMÁRIA HÁ TRÊS MESES.
TINHAM METADE DA MINHA ESTATURA.O SILÊNCIO ENVOLVIA-NOS COMO UM MANTO DE NEVOEIRO.LIA-SE NERVOSISMO NOS SEUS ROSTOS.A TURMA TINHA SIDO INFORMADA ACERCA DAS MINHAS LIMITAÇÕES AUDITIVAS.
PARA ALIVIAR ESTE PESO,SORRI: « BOM DIA! SOU A VOSSA PROFESSORA! »
UMA ONDA DE AGITAÇÃO VARREU-OS.QUE VOZ ERA A MINHA?
SABIA FALAR,GRAÇAS À TERAPIA DE FALA,DESDE OS 4 ANOS DE IDADE E POR SER FILHA DE PAIS OUVINTES E TER SEGUIDO,DESDE MUITO CEDO,A ORALIDADE.NO ENTANTO,A MINHA PRONÚNCIA ERA DEFEITUOSA.
AS REACÇÕES DOS ALUNOS,ALGUNS A RIREM E OUTROS TRAPALHADOS,ATINGIRAM-ME EM CHEIO COMO SE FOSSEM BALAS.FOI POR UM TRIZ QUE NÃO FUGI PORTA FORA.ABRI A TEMPO O MEU ESCUDO INVISÍVEL.ELES ACABARIAM POR SE HABITUAR À MINHA FALA,ERA SÓ UMA QUESTÃO DE TEMPO.

AS LIÇÕES FORAM TEXTOS SEGUIDOS DE TEXTOS E IMAGENS SEGUIDAS DE IMAGENS,SEMPRE ACOMPANHADAS DE RETROPROJECTOR,OBJECTO QUE DERRAMAVA A MINHA VOZ EM PALAVRAS ESCRITAS NA PAREDE.ASSIM APRENDERAM OS ALUNOS.LUTÁMOS COMO SOLDADOS,BATALHÁMOS CONTRA A BARREIRA DE COMUNICAÇÃO.MAS VENCEMOS.EU USAVA DUAS PRÓTESES AUDITIVAS,MAS SÓ OUVIA RUÍDOS SEM LETRAS.POR ISSO,RECORRIA À LEITURA LABIAL.LIA OS SONS NOS MOVIMENTOS DOS LÁBIOS.
MAS ESTA TÉCNICA NEM SEMPRE ERA INTELIGÍVEL.SE FALAVAM COM A BOCA CERRADA,ERA UM CASO PERDIDO.
OS ALUNOS QUE SE ENCONTRAVAM NAS ÚLTIMAS FILAS ERAM PREJUDICADOS.MAL A VOZ SAÍA DA MINHA BOCA,ESMIGALHAVA-SE EM SONS BAIXINHOS NO MEIO DA SALA.EU NÃO TINHA A FORÇA NECESSÁRIA PARA FAZER VOAR INTEIRA PARA LONGE.MESMO FALANDO EM VOZ ALTA OU GRITANDO,NÃO ADIANTAVA.SÓ PIORAVA A MINHA GARGANTA,O QUE ACONTECEU MAIS TARDE.AS MINHAS CORDAS VOCAIS FICARAM GRAVEMENTE INFLAMADAS,ARRISCANDO PERDER A PRÓPRIA VOZ.
ESTES ALUNOS,PARA DESPEDAÇAREM A SUA INACTIVIDADE,LANÇAVAM,COMO DARDOS,TODOS OS TIPOS DE BARULHO.PELAS PRÓTESES,OUVIA-OS,MAS NÃO SABIA DE QUE DIRECÇÃO ELES VINHAM,SE DA ESQUERDA OU DA DIREITA,E QUEM OS TINHAM PROVOCADO.HAVIA ALUNOS CORAJOSOS QUE DENUNCIAVAM OS CRIMINOSOS DO BARULHO,QUE DEPOIS SE ARMAVAM EM INOCENTES.SEM PROVAS,NÃO PODIA FAZER DE JUIZ.

UM MÊS PASSOU.MAIS OUTRO.ELES COMEÇARAM A FICAR HABITUADOS À MINHA DIFERENÇA.
O RICARDO,UM RAPAZINHO GORDUCHO DE OLHOS ESCUROS QUE TINHA ATRÁS DE SI UMA LISTA INFINDÁVEL DE FALTAS INDISCIPLINARES,PASSARA A TER UM COMPORTAMENTO EXCEPCIONAL.CHAMAVA-ME COM FREQUÊNCIA PARA EU OBSERVAR O SEU CADERNO,QUE ESTAVA EXCELENTE E ESCRITO COM ESPECIAL CUIDADO.QUANTO À FILIPA,ESGUIA E FRÁGIL,COM UNS OLHOS TRISTES E ACANHADOS,PASSARA A SER SORRIDENTE E CONFIANTE.
AO TERCEIRO MÊS,QUANDO JÁ PAIRAVA UMA CERTA ACALMIA ENTRE NÓS,CHEGOU O DIA EM QUE SERIA TRANSFERIDA PARA OUTRA ESCOLA.ESTÁVAMOS QUASE NO FIM DA ÚLTIMA AULA QUANDO ANUNCIEI: « MENINOS,ATENÇÃO! NÃO VAI HAVER TESTE NA QUINTA-FEIRA.»
TODOS SE PRECIPITARAM,ATENTOS.OS DA FRENTE TRANSBORDARAM A MINHA MENSAGEM ORAL PARA OS DE TRÁS.PROSSEGUI COM VOZ LIGEIRAMENTE TRÉMULA: «VÃO TER OUTRA PROFESSORA.»
O CHOQUE ABANOU A SALA TODA E PERCORREU-ME PELA ESPINHA ACIMA.
ABRUPTAMENTE,UM DEDO FUROU A ATMOSFERA.ERA O DO RICARDO. «PORQUE SE VAI EMBORA?»
«VOU PARA OUTRA ESCOLA ENSINAR OS MENINOS QUE NÃO OUVEM.»
UMA ALUNA INTERVEIO: «COMO A PROFESSORA?»
«SIM.NÃO OUVEM COMO EU.»
«ELES FALAM EM LÍNGUA GESTUAL?»
«SIM,FALAM.»
«EU GOSTAVA DE APRENDER ...»
OUTRO DEDO LEVANTOU-SE: «EU TAMBÉM!»
MAIS UM: «EU!»
SENTI UM APERTO DO CORAÇÃO.
«VÃO TER UMA PROFESSORA QUE OUVE.ASSIM,VÃO APRENDER MAIS DEPRESSA E SEM PROBLEMAS DE COMUNICAÇÃO.»
QUEDARAM-SE MUDOS.POR FIM,A CAMPAINHA INUNDOU O SILÊNCIO.ARRUMEI CALMAMENTE OS MATERIAIS NA PASTA,ENQUANTO ELES SAÍAM UM A UM,ARRASADOS COMO SE TIVESSEM CHUMBOS NAS COSTAS.
VAGUEEI O MEU OLHAR PELA SALA DESERTA PARA ME DESPEDIR.DE REPENTE,UMA CRIANÇA ENTROU DE ROMPANTE NA SALA,ASSUSTANDO-ME.ERA A DELEGADA DE TURMA E ESTAVA LAVADA EM LÁGRIMAS.
«QUE SE PASSA? PORQUE ESTÁS A CHORAR?»
«ELES FORAM TÃO MAUS PARA A PROFESSORA!»
«PRONTO! ESTÁ TUDO BEM.JÁ PASSOU.»
OFERECI-LHE UM SORRISO TRANQUILO.JÁ ESTAVAM PERDOADOS.DESPEDIMO-NOS SEM MAIS PALAVRAS.EM SEGUIDA,VIERAM OUTROS ALUNOS TAMBÉM DESPEDIR-SE.ESTAVAM IGUALMENTE EMOCIONADOS.
NO RECREIO,OS ALUNOS CORRIAM A TER COM OS SEUS PAIS QUE OS ESPERAVAM.IA A CAMINHAR QUANDO SENTI UM PUXÃO NA MINHA MANGA.ERA O JOÃO,O MAIS CALADO E BEM-COMPORTADO DA TURMA.ESTAVA COM O SEU IRMÃO MAIS VELHO.TINHA UMA COISA PARA ME DIZER: «EU GOSTO MUITO DA PROFESSORA.» HAVIA PUREZA NO OLHAR DESTA CRIANÇA.UMA TOLERÂNCIA À DIFERENÇA QUE OS ADULTOS NÃO SE ATREVIAM A MOSTRAR.A MINHA VOZ FICOU ENTALADA NA GARGANTA DEVIDO À COMOÇÃO.LIMITEI-ME A DESPEDIR-ME COM UM BREVE ADEUS.SEGUI PELA FRENTE ATÉ TRANSPOR OS PORTÕES.NÃO OLHEI PARA TRÁS.E ASSIM FICOU ESTA RECORDAÇÃO NO LUGAR QUENTINHO DO MEU CORAÇÃO.